A corajosa cozinha de Sudbrack


A história da chef que faz de ingredientes cotidianos receitas sofisticadas e surpreendentes. Aprenda uma delas

Renata Helena Rodrigues, do Rio de Janeiro, especial para o iG
Celso Pupo/Fotoarena
A chef Roberta Sudbrack
“Não tenho o menor interesse em começar a trabalhar com quiabo e terminar com pó de quiabo.” A frase diz muito sobre Roberta Sudbrack. Em sua cozinha, nada de esferificações ou métodos ultramodernos à la Ferran Adrià. “Eu uso calor e técnica, mais nada”, diz ela. Mas nem pense que no restaurante carioca você vai encontrar pratos simples, que não fogem do feijão com arroz caseirinho. A apresentação e o preparo cuidadoso são alta gastronomia pura. “Minha linha é completamente contrária à da cozinha molecular, mas me proponho a fazer uma cozinha moderna brasileira.” 

O conceito de simplicidade, no sentido de trafegar por uma culinária sem pirotecnia, mas muito consistente e ligada às raizes, vem desde as primeiras memórias relacionadas à comida. “Minha lembrança mais remota é o frango ensopado com polenta da minha avó”, diz. “ É o prato que eu pediria no corredor da morte .” Esse equilíbrio da tradição com a técnica apurada e criativa resulta em comida benfeita, sem excessos e ao mesmo tempo surpreendente: as receitas de Sudbrack têm uma fórmula enxuta, não mais do que três elementos e todos com seu sabor essencial mantido e destacado. “Em muitos dos meus pratos os ingredientes aparecem como eles realmente são, sem molhos para mascarar. Algumas pessoas estranham. Sei que fazer isso é um ato de coragem.”
Quem prova as delicadas receitas de Roberta, a exemplo do quiabo defumado recheado de camarão semicozido, pode imaginar que ela tenha aprendido suas técnicas na Europa e estagiado em restaurantes estrelados pelo mundo afora. Nada disso. A chef começou seu aprendizado no exterior, mas ela é autodidata. 

Gaúcha de Porto Alegre, ela morava com os avós em Brasília. Quando o avô faleceu, a família enfrentou dificuldades financeiras e Roberta começou a vender cachorro quente nas ruas da Capital Federal. O molho de tomate caprichado era preparado diariamente pela avó Iracema e, junto com a salsicha artesanal, garantiu o sucesso dos sanduíches. “Foi com o dinheiro dos cachorros quentes que fui fazer faculdade de veterinária nos Estados Unidos (em Bethesda, a noroeste de Washington).” A receita até hoje é tratada com carinho pela chef. Sua versão mais elaborada, batizada de SudDog, faz sucesso em seu restaurante.
Divulgação/Renato Neto
Quiabo defumado recheado com camarão semicozido, receita de Roberta Sudbrack
Quando morou sozinha nos Estados Unidos, Roberta teve contato pela primeira vez com a cozinha. E foi amor à primeira vista. “Até então nunca tinha precisado fazer comida, não sabia nem fritar um ovo”, conta. “Mas logo na primeira visita ao mercado, toquei os alimentos e percebi que era isso que queria. Foi muito definitivo.” Decidiu, então, comprar livros e montar seu próprio sistema de estudos. “Eu escrevia para as escolas para saber como era a programação delas e criei uma rotina para mim. Foi um laboratório completamente solitário.” Equilibrando seu tempo entre o curso de veterinária e as panelas, Roberta cortava legumes para ganhar agilidade com a faca, fazia molhos de todos os tipos e tentava dominar as técnicas da cozinha clássica. “Sabia que mesmo para fazer uma cozinha moderna, seria preciso conhecer muito bem a base clássica, que é o alicerce da comida.”
Quando a vontade de seguir carreira na cozinha ganhou ainda mais força, Roberta largou a faculdade e voltou para o Brasil com o apoio irrestrito da avó. “Ela me disse: ‘É isso que você quer? Então faça e faça o melhor que você puder’”. Na época, a decisão causou espanto. O glamour que existe hoje em torno da profissão de cozinheiro ainda não estava em voga. Ainda no Brasil, Roberta passou dois anos sem exercer a profissão. Achava que precisava de mais treinamento, e continuou o programa de experimentações práticas. Deu certo. “Ela faz uma cozinha moderna, valorizando o produto brasileiro como ninguém mais faz”, afirma Claude Troisgros. Ele conta que quando levou Gérald Passédat, respeitado chef francês do Le Petit Nice , em Marseille, para provar a culinária de Roberta, o colega disse: “Se ela estivesse na França, teria três estrelas Michelin” – em tempo: o restaurante de Passédat é condecorado pelo badalado guia com exatas três estrelas, o reconhecimento máximo da publicação.
Depois do treino intensivo, a chef começou a preparar pequenos jantares em residências brasilienses. Em um dos primeiros eventos, o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, estava entre os convidados. “Achei que seria uma vez na vida, que eu colocaria no currículo que havia cozinhado para o presidente e ponto.” Pouco tempo depois, Roberta foi convidada para elaborar o cardápio de alguns eventos do Palácio da Alvorada e logo recebeu a chamada para assumir definitivamente o comando das panelas na residência oficial do dirigente da República. Assim, rompeu barreiras e se tornou a primeira mulher a assumir o cargo.
“O sonho de qualquer cozinheiro é ter o próprio restaurante, mas a oportunidade do Palácio da Alvorada foi uma grande experiência de vida.” Depois de sete anos comandando uma equipe completamente formada por militares e servindo chefes de Estado de todo o mundo, a chef partiu para voo solo e mudou-se para o Rio de Janeiro para abrir seu próprio restaurante.
Hoje, em uma pequena casa de fachada laranja, próxima à Lagoa Rodrigo de Freitas, Roberta recebe poucas pessoas por noite e serve algumas das mesas mais disputadas do Rio de Janeiro, atendendo somente com reservas. O menu degustação de nove etapas tem ingredientes escolhidos no próprio dia. Ela seleciona as melhores carnes e os peixes mais frescos do mercado para desenvolver suas receitas. Toda sexta-feira o restaurante abre também no horário de almoço e às terças oferece um cardápio mais enxuto (e mais barato) no jantar.
Confira abaixo trechos da conversa do iG Comida com a chef Roberta Sudbrack, em seu restaurante no Rio de Janeiro.
iG: Por que escolheu o Rio de Janeiro? 
Roberta Sudbrack: Quando saí do Palácio, eu sabia que tinha que ir para o Rio ou para São Paulo, porque são dois grandes polos gastronômicos. Em São Paulo, tive três propostas fantásticas, enquanto, no Rio, não tive nenhuma. Como eu gosto de desafios, resolvi vir para cá. Nem sempre foi fácil. Nossa proposta era muito nova, muito ousada. Mas agora já “carioquei” de vez.
iG: Quando você fala das suas primeiras referências com comida, sempre se refere a algo muito caseiro, muito simples. Como chegou à cozinha sofisticada que você faz hoje? 
Roberta Sudbrack: Ela é sofisticada, mas a base é muito simples. Minha cozinha se expressa com modernidade, mas preserva uma forte ligação afetiva. Seja com uma lembrança, com uma cozinha de família, com aquele cheirinho do fogão a lenha ou a história de raspar o tacho. O que nós queremos mostrar aqui é que o ingrediente precisa aparecer. O grande erro que acontece na gastronomia é o cozinheiro achar que ele é que tem que aparecer. Quem tem que aparecer é o prato.
iG: É uma união do simples e do sofisticado? 
Roberta Sudbrack: Eu gosto muito de simplicidade. É claro que a gente busca sensações diferentes, inusitadas, buscamos a surpresa, mas, acima de tudo, a coisa mais importante é o respeito com o ingrediente. Não tenho o menor interesse de começar a trabalhar com quiabo e terminar com o pó de quiabo. Para mim o quiabo tem que estar ali. Eu vou fazer com que ele se expresse de uma maneira diferente, eu vou contextualizá-lo na alta gastronomia. Mas ele tem que ser quiabo, o mesmo que é cozido no fogão a lenha. As pessoas imaginam que ele não pertença a esse contexto, mas eu consigo provar o contrário.
iG: E você busca que as pessoas tenham essa relação afetiva com a sua comida? 
Roberta Sudbrack: É o sonho de qualquer cozinheiro. Quando eu desço em uma mesa, o maior elogio é ver os olhinhos das pessoas se encherem de lágrimas. Se a refeição propiciou fazer essa volta, essa viagem nas lembranças, a equipe cumpriu seu papel. Para mim, cozinha é técnica e emoção na mesma proporção. Não pode ter mais de um nem mais de outro. Você pode fazer um jantar que é tecnicamente impecável, mas que falta emoção.
iG: Quais são os critérios para escolher o ingrediente que será seu objeto de estudo? 
Roberta Sudbrack: Não tenho. Eu tenho uma fascinação por essa coisa do dia a dia. Tenho essa obstinação de tentar mostrar que a gente não pode rotular o ingrediente como “só para comida feita em casa”. Então eu já fiz o ano do quiabo, do maxixe, do chuchu...
iG: E você costuma escolher ingredientes que a maioria das pessoas considera insípidos? 
Roberta Sudbrack: Não necessariamente. Em 2010 fizemos o ano da banana, e todo mundo gosta de banana. Foi uma dificuldade diferente, porque nesse caso toda família tem uma receita. O quiabo era o desafio de fazer a pessoa pelo menos experimentar. O chuchu era aquela história de dizer que é o quinto estado da água, que não tem textura. E eu queria mostrar justamente o contrário. Dessas experiências saem os pratos que se tornam hits da coleção.
iG: E desses ingredientes teve algum que mais a surpreendeu? 
Roberta Sudbrack: O quiabo! Foi o mais difícil e o que teve o resultado mais bacana. Tenho um carinho especial porque foi o primeiro com que eu trabalhei que as pessoas apresentavam resistência. O bacana é assistir as pessoas perderem o medo. Quando os clientes abrem o meu cardápio e vêem chuchu, maxixe, abóbora, quiabo, não ficam mais assustados. Eles sabem que vamos demonstrar uma maneira diferente de o ingrediente se expressar.
iG: Como funciona essa sua experimentação? 
Roberta Sudbrack: Eu passo o ano inteiro trabalhando. Eu não tenho um laboratório, nós fazemos isso no dia a dia mesmo. Às vezes o que deu errado é o que vai dar muito certo. A farinha de banana, por exemplo, que foi a coisa mais bacana que fizemos no ano passado, surgiu de um erro. Uma fruta quase queimou e nós descobrimos uma característica fantástica da banana: o amargo. Os erros também são muito importantes.
iG: Você costuma compartilhar bastante no twitter. Como isso cresceu tanto? 
Roberta Sudbrack: É engraçado porque a minha comida está muito mais ligada à afetividade do que à tecnologia. Eu tenho até medo dessas coisas muito tecnológicas, dessas máquinas cheias de coisas. Acho engraçado como acabei me dando bem com o twitter, mas eu acho que eu tenho uma explicação. Isso acontece porque através dele eu consegui ficar mais próxima das pessoas que gostam do meu trabalho. Então, apesar de ser uma ferramenta tecnológica, eu criei uma relação afetiva com as pessoas que me seguem. Eu falo quando eu estou bem, quando eu não estou bem. Eu costumo dividir o que deu certo e o que deu errado. É uma relação de proximidade.

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